Se você for um entusiasta de cervejas já há algum tempo,
certamente já ouviu a famosa versão de como foi criado um dos estilos mais
consagrados dentro do movimento cervejeiro, a India Pale Ale, cerveja que tem nas suas características mais
marcantes o amargor destacado.
Brooklyn East India Pale Ale Fonte: http://www.theperfectlyhappyman.com |
A versão da história a que me refiro vem sido passada de
boca em boca e consta até em ótimas literaturas cervejeiras como “A
Mesa do Mestre Cervejeiro – Garrett Oliver”, inclusive já foi até postada
aqui mesmo no blog anteriormente quando falamos sobre o lúpulo,
e transcrevo aqui resumidamente:
No final do século XVIII e começo do Século XIX a colonização Britânica na Índia já estava bem estabelecida e os colonos precisavam de cerveja. No entanto, pelo Canal da Mancha as mesmas não resistiam às longas e calorentas viagens, azedando. Além disso, devido ao calor na Índia, era impossível fabricar cerveja ali.A solução foi dada pelo Inglês George Hodgson: Ele produziu uma Pale Ale com mais álcool e lúpulo, notórios conservantes naturais, deixando fermentar por muitos meses até que se esgotassem todas as reservas de açúcar, dificultando com que qualquer micro-organismo sobrevivesse na cerveja, além disso, a cada barril de cerveja pronta adicionou-se uma dose extra de lúpulo como conservante. O resultado foi uma cerveja com cerca de 7% de álcool, extremamente seca e amarga. A viagem à Índia foi completada com sucesso pelo Canal da Mancha.
Mas a história não é bem assim
Recentemente, duas leituras me chamaram bastante atenção e
refutam a romântica história citada acima. Calma, amigo cervejeiro, não estou
enlouquecendo... As leituras a que me refiro são dos livros “IPA
– Brewing Techniques, Recepies and the Evolution of India Pale Ale – Mitch Steele”
(IPA – Técnicas de Brassagem, Receitas e a Evolução da India Pale Ale – Mitch Steele)
e “The
Oxford Companion to Beer – Garret Oliver” esse segundo, em um artigo
assinado por Pete Brown. Em ambos, mostram embasadas pesquisas históricas com
datas e registros da época.
A bem da verdade, realmente George Hodgson foi um grande
exportador de cervejas às Índias, mas essa história começa com a fundação de
uma instituição chamada British East India Company (BEIC, que tinha o intuito de
estabelecer o comercio entre Londres e as índias. Pouco tempo depois, uma
cervejaria estabeleceu-se nas proximidades da BEIC, em Londres, a Hodgson’s.
Isso permitiu criar um grande acordo comercial entre as partes e a cervejaria
tinha praticamente um monopólio das exportações de cerveja que já eram feitas em navio.
No entanto, a Cervejaria Hodgson’s era reconhecida pela produção
de Porters, embora também fabricasse Pale Ale e uma Ale forte conhecida como
October Beer. A grande questão é que, documentos da época, mostram que Hodgson’s
exportava não apenas a Pale Ale, mas também seus outros estilos do portfólio, e
todos chegavam às índias em boas condições.
A literatura da época também mostra que maturar as cervejas
dedicadas à exportação por longo período (praticamente um ano), para que os
barris não explodissem nas viagens, e adicionar lúpulo extra para conservação,
eram conhecimentos comuns da época e não foram desenvolvidos pela Hodgson’s. Além
do mais, George Hodgson nunca clamou ter desenvolvido uma receita especial para
enviar a Índia, o que demonstra que se tratavam das mesmas cervejas que ele distribuía
na Inglaterra.
Alguns anos mais tarde, quando a cervejaria passou a ser
controlada por Frederick Hodgson (neto de George) começaram a surgir rusgas com
os dirigentes da BEIC, e esses procuraram uma cervejaria de Burton-on-trent,
a Allsopp, e pediram que a mesma replicasse a receita de Pale Ale fabricada por
Hodgson. Acontece que a água de Burton-on-trent é rica em sulfatos, o que
proporcionou uma cerveja mais clara e refrescante, ideal para o clima da índia.
Em seguida, outras cervejarias também começaram a exportação de cervejas
semelhantes, com destaque para a cervejaria Bass, que em pouco tempo superou a exportação
da Allsopp.
Durante muitos anos, essa Pale Ale dedicada à Índia (daí
surgem os primeiros registros de India Pale Ale) era a principal bebida dos
colonos ingleses que lá estavam. Ainda que se exportassem Porters em grandes
quantidades, era difícil que com temperaturas médias acima dos 30ºC algo fosse
mais palatável que as Pale Ales. No entanto, no final do século XIX o
desenvolvimento da refrigeração artificial permitiu o fabrico de cervejas na índia
e, com a popularização das Lagers (mais leves e refrescantes) em todo o mundo,
gerou um declínio gigantesco na produção de India Pale Ales.
Fonte: http://beer.about.com |
Poucas IPAs seguiram em produção após a revolução das
lagers, e tinha o comercio completamente focado na Grã-Bretanha, um dos poucos
países a manterem as tradicionais Ales. Foi apenas recentemente, com a explosão
da Beer Revolution nos anos 80 e 90, encabeçada por cervejeiros artesanais e
caseiros que o estilo foi resgatado e massivamente produzido como conhecemos
hoje.
Concluindo...
A história dessa cerveja que tanto amamos pode não ser
tão simples e romântica como pensávamos, mas é sem dúvida mais cativante e
complexa, talvez até mais apropriada a essa tão rica cerveja, marcada pelo amargor
do lúpulo em destaque, corpo médio e álcool ao redor dos 7%, que fazem do
estilo o predileto de 9 em cada 10 apreciadores da verdadeira cerveja.
Os dois livros são ótimos mas são referências indiretas ao livro do Pete Brown, "Hops and Glory", onde não só ele revê a história da IPA, desde a expansão comercial inglesa com seus personagens, dandies, comerciantes, empresas e cervejas mas também conta em paralelo a sua própria aventura de levar um barril de cerveja de Burton on Trent para Calcutá.
ResponderExcluirUm livro que diverte, instrui e alimenta ainda mais a mística da India Pale Ale!
Obrigado pela dica de leitura, Stelling!!!
ExcluirOk. Mas qual foi o estímulo para deixá-la tão lupulada então?
ResponderExcluirAcredito muito no acaso.
ExcluirPara melhorar a conservação , de uma forma geral, não especificamente pq era exportada!
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